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quarta-feira, 20 de julho de 2011

A crise

    Era Era uma vez uma empresa chamada Língua Portuguesa Brasileira. Esta empresa produzia gêneros de primeira necessidade para o mercado: frases, orações, textos, entre outros produtos. Entre seus principais funcionários estavam os verbos e os sinais de pontuação e de acentuação. Os verbos sempre tiveram posições de destaque na empresa, embora os sinais de pontuação e acentuação desempenhassem um trabalho intenso na produção industrial, mesmo quando os verbos estavam de folga ou de férias. Por isso, sempre houve pequenos atritos entre as duas categorias; contudo, nada que prejudicasse a eficácia dos processos produtivos.
    Nos últimos meses um rumor sobre uma tal crise no mercado internacional da Língua Portuguesa acirrou os ânimos dos funcionários. Como é comum em muitos segmentos profissionais, a possibilidade de crise não incomodou muito os alto-funcionários – os verbos. Por outro lado, os sinais de pontuação ficaram apreensivos: a exclamação andava exibindo por aí uma cara de espanto; as reticências esboçavam algumas discussões sobre a questão, mas, de tão nervosas, não conseguiam nem terminar as frases que começavam... A vírgula sempre pedia uma pausa nas discussões, e começava a dar exemplos do que podia acontecer: redução de textos, crescimento da linguagem não-verbal, demissões em vários setores.
    Para instalar de vez o medo e a insegurança, o travessão soube (através de um ponto e virgula que trabalhava no setor de publicidade) que, na produção de alguns anúncios, os gestores já estavam preferindo dispensar a pontuação e usar apenas substantivos (auxiliados por alguns adjetivos terceirizados) a nível de experiência, o que representava um perigo também para os verbos. Diante desta declaração, todos os sinais ficaram assustados. Mas os sinais de pontuação sabiam que nada tiraria o emprego dos verbos, o que representava um perigo maior ainda para sua classe. No fim, imperava as declarações da interrogação.
    No setor dos sinais de acentuação, o acento agudo liderava as discussões com sua entonação forte nas palavras; a crase (que era de esquerda) acusava o acento agudo (que era de direita) de não ter pulso, nem convicção ideológica, para enfrentar os patrões na hora H; o til não falava muito (sempre resfriado, sua voz nasalada não se impunha); o circunflexo (que sempre teve afinidade com o til) escutava discretamente.
Estas assembléias se dispersavam rapidamente quando os supervisores dos setores, as aspas, apareciam para ver o que estava acontecendo.
    Quando os rumores começaram a se tornar uma possibilidade real, o presidente da empresa, o Senhor Gramática, chegou a declarar sobre o assunto que a crise para a Língua Portuguesa era só uma “marolinha”, o que irritou os funcionários. Mas logo reconheceu que precisava se preparar para fazer algumas mudanças para enfrentar a crise, depois de uma longa conversa que teve com o conselheiro da empresa, o dicionário.
    Com a inevitável chegada da crise, eis as mudanças as quais a empresa Língua Portuguesa Brasileira precisou implementar para se adequar ao efeito colateral desta globalização da linguagem; alguns funcionários tiveram suas funções reduzidas ou simplificadas para não perder o emprego: o acento agudo deixou de pontuar os ditongos abertos EI e OI, as paroxítonas com I e U tônicos que formam hiatos e as formas verbais que têm o acento tônico na raiz, com U tônico precedido de G ou Q e seguido de E ou I. O circunflexo não acentua mais palavras terminadas em OO. Também perdeu as horas-extras que fazia acentuando a conjugação da terceira pessoa do plural do presente do indicativo ou do subjuntivo dos verbos CRER, DAR, Ler e VER. O agudo e o circunflexo diferenciais pararam o trabalho com as palavras homófonas e as de grafia idêntica [ainda permitiram que o circunflexo acentuasse PÔR (verbo) e PÔDE (verbo) em reconhecimento aos anos de trabalho dedicado deste funcionário).
    O trema foi demitido e ficou trabalhando como autônomo exercendo a função de dois pontos.
    No setor de palavras compostas, alguns hífens não aceitaram as propostas da empresa e pediram demissão, forçando, assim, algumas letras (o R e o S) a trabalhar dobrado, enquanto outros hífens resolveram permanecer perdendo alguns benefícios.
    Alguns estagiários, o K, o W e o Y, foram promovidos a funcionários efetivos.
    Quando todas as mudanças já estavam em vigor, os funcionários foram informados de que a crise globalizante também atingiu a matriz da empresa, situada em Portugal, e outras filiais pelo mundo (como as de Angola, Cabo Verde, Timor-Leste, entre outras).
    O setor de pontuação não sofreu alterações. Os comentários no setor de acentuação é que os sinais de pontuação subornaram as aspas. De acordo com declaração dada pelo trema, o suborno foi ideia do ponto final.